Ao longo da história, tanto os
teólogos quanto a piedade popular se dividiram na opinião se Maria
morreu de fato ou se apenas adormeceu e foi levada ao céu em corpo e
alma pelos anjos. A basílica em sua honra em Jerusalém chama-se
exatamente "Dormitio Mariæ" e um dos documentos mais antigos que temos
sobre os últimos dias de Maria também leva esse título. O dogma da
Assunção de Maria, proclamado em 1950, não dirimiu a questão, afirmando
que "a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso
de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celeste". O
corpo de Maria, elevado ao céu, podia já ser um corpo glorificado, como o
de Jesus após a ressurreição.
Tanto os que falam em morte
natural de Maria quanto os que falam em sono profundo da Mãe de Deus têm
seus bons argumentos. Estes últimos argumentam com sua conceição
imaculada. Se a morte é conseqüência do pecado, Maria, sem pecado e sem
sombra de pecado, não podia morrer. Lembram também que a imortalidade é
uma característica da Igreja. Ora, sendo Maria o protótipo da Igreja,
bem podia Deus realizar nela o que fará com a Igreja no final dos
tempos, ou seja, ressuscitar os que morreram e "arrebatar com eles para
as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares os que ainda estão vivos" (1Ts
4,16-17).
Os que afirmam sua morte natural
lembram que também Jesus era imaculado e santíssimo e passou pela
morte, destino de todos os filhos de Adão, porta e parto necessários
para a imortalidade. Maria é o modelo de todos os resgatados pelo Cristo
através de sua morte e ressurreição. Também Maria, que se uniu a Ele no
Calvário, ter-se-á configurado a ele na morte e na ressurreição. Assim
como ela, sem pecado, passou por dores, angústias, desconfortos,
perseguição, também terá passado pela prova maior: a morte corporal. Sem
que com isso se afirme que seu corpo sofreu a decomposição.
As duas tradições são
antiqüíssimas. Em nossos dias prevalece a tese de que Maria passou pela
morte à imitação de Jesus. Mas é ainda e continuará a ser uma questão em
aberto. Também não temos certeza de onde e quando Maria encerrou sua
passagem terrena. Sabe-se que, na dispersão dos Apóstolos, Maria
acompanhou João, como recomendara Jesus na Cruz (Jo 19,16-27). O
Apóstolo João teria migrado para Éfeso, hoje sudoeste da Turquia, uns
600 km ao sul de Istambul. Maria teria findado seus dias em Éfeso. Esta
tradição tomou corpo a partir do século XVIII com as visões da camponesa
alemã Ana Catharina Emmerich (1774-1824) que, em sonho ou numa
revelação, "viu" no alto da montanha popularmente denominada "Colina do
Rouxinol", distante 7 km da antiga cidade portuária de Éfeso, a capela
Meryem Ana Evi (Casa da Mãe de Deus), que seria a casa em que Maria
teria terminado seus dias. Catharina viajou para lá, encontrou tudo como
"vira" em sonho e começou a restaurar a antiga capela-casa de Maria,
que até hoje os peregrinos podem visitar. Mães turcas, católicas e
muçulmanas visitam continuamente aquele santuário, para terem um bom
parto e sorte na educação dos filhos. No entanto, não há documentos
históricos que favoreçam essa tradição e as escavações arqueológicas
mostraram que a capela é certamente posterior ao século VI.
Uma outra tradição faz Maria
terminar sua jornada terrena em Jerusalém, no Monte Sion e ser sepultada
no lugar onde se encontra hoje a Basílica da "Dormição de Nossa
Senhora", na região do Vale do Cedron, local tradicional de sepulturas.
Os estudos arqueológicos e outros indícios fazem remontar o túmulo aos
tempos romanos, ou seja, ao primeiro século da nossa era. Além disso,
foram encontradas grafites, escritas pelos primeiros cristãos, que iam
honrar o local do túmulo de Maria. Foram encontradas também algumas
sepulturas judeu-cristãs, que ladeiam a câmara mais interna. Temos ainda
a tradição oral de dois mil anos: os cristãos sempre foram lá venerar o
túmulo da Mãe de Deus. E temos, além disso, alguns relatórios de
peregrinos (famoso é o de Etérea), que por lá passavam e registravam
suas impressões sobre a visita e a liturgia celebrada no local. Maria
teria voltado de Éfeso para Jerusalém, onde moravam seus parentes,
quando o Apóstolo João retornou para participar do primeiro Concílio
Ecumênico da Igreja (At 15,6-29).
Na década de 60, quase ao mesmo
tempo em que o franciscano Frei Bellarmino Bagatti fazia as escavações
científicas junto ao túmulo de Maria, foi descoberto, na biblioteca do
Louvre, em Paris, um documento em grego que possibilitou chegar a outros
documentos, sobretudo a três, muito próximos entre si tanto na
informação quanto no estilo. São eles: De Transitu Mariæ (em língua
etíope), Dormitio Mariæ (em grego) e Transitus Mariæ (em latim). Estes
textos devem ser datados do final do segundo século até começos do
século quarto. Os três textos concordam em que Maria tenha terminado
seus dias em Jerusalém.
A última referência bíblica a
respeito de Maria a temos nos Atos, ainda quando os Apóstolos estavam no
Cenáculo, depois da Ascensão de Jesus: "Todos permaneciam unânimes na
oração com algumas mulheres, Maria, Mãe de Jesus, e seus irmãos" (At
1,14). Mas até o século VIII o texto grego "Dormitio Mariæ"
encontrava-se no final da bíblia, depois do livro do Apocalipse. Hoje
esse texto é considerado apócrifo, isto é, não pertencente ao conjunto
dos livros da Sagrada Escritura, portanto, não revelado. Mas de todo
respeito. Podia-se perguntar por que a Igreja não aceitou esse livro
como revelado. Porque seu estilo é todo diferente e, no IV século,
quando se fixou a canonicidade dos livros da Escritura, esse livro tinha
muitos acréscimos heréticos e tendenciosos contra a divindade de Jesus,
contra a maternidade divina de Maria, contra a Santíssima Trindade, e
já não se sabia mais qual era o texto original. O texto descoberto agora
é anterior a esses acréscimos e, por isso, merece algum crédito e,
diria, alguma veneração.
Segundo este texto e segundo o
texto intitulado "Transitus Mariæ", teríamos os seguintes passos: Maria
recebe o anúncio de sua morte e garantia de amparo no momento da
passagem; os Apóstolos se reúnem milagrosamente em torno de seu leito;
Maria morre à semelhança de todos os seres humanos; durante o funeral,
os judeus promovem uma manifestação hostil; depois do sepultamento,
segue-se a ressurreição, sendo levada ao céu. Não podemos esquecer que
não estamos num terreno de fé. Mas de piedosa crença popular. Na
verdade, os últimos dias de Maria e sua passagem para a eternidade estão
envoltos num véu de mistério que dificilmente a história ou a teologia
conseguirão desvendar.
Que idade teria Nossa Senhora
quando terminou seus dias na terra? Há um texto antigo que diz: "Dois
anos depois de Cristo ter vencido a morte e subido ao céu, Maria começou
a chorar no refúgio de seu quarto", ou seja, Maria passou a viver seus
últimos dias. O texto passa a contar esses últimos dias, inclusive sua
assunção ao céu. Se Maria concebeu Jesus aos 14 anos, deu à luz aos 15
(idade normal naquele tempo na Ásia Menor para casar) e Jesus morreu em
torno dos 33 anos, Maria teria 50 anos ao morrer. Sabe-se que era a
idade média de vida das mulheres naquele tempo e naquela região.
Há uma tradição, que vem dos
primeiros tempos da Igreja, que conta que, chegado o momento do trânsito
de Maria, Jesus teria vindo buscá-la, acompanhado dos Arcanjos Miguel e
Gabriel. O Arcanjo Miguel foi o anjo vencedor de Lúcifer no paraíso
terrestre (Ap 12,7-9) e o vencedor do dragão de sete cabeças, que quis
devorar o filho da mulher revestida de sol (Ap 12,3-5). No passamento de
Maria, hora mais de triunfo e vitória do que de morte, retorna, na
piedade popular, o grande Arcanjo, como que para re-arrumar o paraíso
perdido e introduzir nele, agora celestial, a humanidade inteira,
representada em Maria Imaculada, virgem, esposa e mãe, Mãe de Deus.
Retorna Miguel, o protetor da Igreja contra Satanás, para acompanhar na
entrada da glória aquela que é o protótipo da comunidade cristã redimida
e santificada.
Retorna também, na piedosa
crença popular, com o Cristo glorioso, o Arcanjo Gabriel, o embaixador
de Deus na Anunciação (Lc 1,26), a testemunha da escolha da jovem Maria
de Nazaré como Mãe do Filho de Deus, o Messias Salvador. O Arcanjo,
presente no início da história da salvação trazida pelo Cristo e na qual
Maria se envolvera cem por cento, retorna no momento em que ela termina
sua missão e seus dias na terra, entra gloriosa no seio da Trindade
para ser, no tempo e na eternidade, a Mãe da Igreja, a terníssima Rainha
do Céu e da Terra.
Maria esteve associada a Jesus a
vida inteira (de fato, os teólogos a chamam "Sócia de Cristo").
Associada no corpo, fazendo uma unidade com ele. Associada na missão
redentora a ponto de ser chamada "Mãe da Redenção". Associada na morte e
associada por toda a eternidade na glória. Passando pela morte, Maria
tornou-se para a humanidade a "feliz porta do céu, para sempre aberta".
Por Frei Clarêncio Neotti, O.F.M
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