Os protestantes e a visita do papa. Encontrei este artigo no site da revista cristã "Ultimato" publicado na edição de Setembro-Outubro/2013 e achei uma análise muito interessante. Vale a pena ler.
O Brasil viveu novamente o espetáculo impressionante de uma visita papal, com enorme destaque na mídia e forte mobilização popular. A chegada do papa Francisco ao Rio de Janeiro em 22 de julho de 2013 ofuscou a notícia mais importante daquele dia no restante do mundo -- o nascimento do herdeiro do trono inglês, o filhinho do príncipe William e Kate Middleton. Francisco foi o terceiro pontífice romano a visitar o Brasil, depois de João Paulo II e Bento XVI. Porém, existiram algumas peculiaridades especiais quanto a essa visita: esse papa é, por assim dizer, um filho da terra, o primeiro procedente do terceiro mundo e da América Latina; ele realizou sua primeira viagem internacional ao Brasil, e não à sua nativa Argentina; além disso, estando ainda no início do seu pontificado, pois foi eleito em 13 de março, já construiu uma poderosa imagem pessoal como um papa humilde, despojado e disposto a corrigir diversas mazelas na administração da igreja e na vida do clero. Além disso, a visita papal ocorreu no contexto de outro evento marcante, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), instituída em 1984 e da qual já ocorreram treze edições.
Segundo muitos observadores, a visita do papa Francisco (nascido em 1936 e batizado como Jorge Mário Bergoglio) não teve somente o objetivo de prestigiar a Jornada Mundial da Juventude, com suas centenas de milhares de participantes vindos de 150 países. Ele veio também reanimar a igreja católica brasileira, que tem perdido grandes contingentes de adeptos, principalmente das camadas mais desprivilegiadas da população, para as igrejas evangélicas, em especial as pentecostais. As estatísticas das últimas décadas demonstram claramente esse êxodo, como informa um artigo recente do jornal “Valor Econômico”. Em um século (1870–1970) o número de católicos brasileiros caiu muito pouco, passando de 100% para 92% da população. Porém, no período 1980–2010, os católicos passaram de 89% para 65%, uma queda de 24 pontos percentuais em apenas 30 anos. Nesse mesmo período, os evangélicos tiveram um crescimento exponencial, passando de 6,6% para 22,2% dos brasileiros. Em 2010, só os pentecostais já totalizavam mais de 25 milhões de fiéis no país. Assim, a presença do papa também teve essa dimensão de resposta ao crescimento evangélico no Brasil e na América Latina.
Desde uma perspectiva protestante, a visita de Francisco, um jesuíta que se tornou arcebispo de Buenos Aires em 1998 e cardeal em 2001, desperta muitas reflexões. Não se pode deixar de admirar um homem que, no dia de sua chegada, declarou a uma plateia de políticos e outras pessoas importantes, a começar da presidenta Dilma Rousseff: “Não tenho ouro nem prata, mas trago o que de mais precioso me foi dado: Jesus Cristo! Venho em seu Nome, para alimentar a chama de amor fraterno que arde em cada coração; e desejo que chegue a todos e a cada um a minha saudação: ‘A paz de Cristo esteja com vocês!’”. É inegável a tremenda força moral e a influência positiva para o bem exercida por esse líder religioso no cenário internacional. Francisco e seus antecessores imediatos têm levantado a voz como representantes das melhores tradições humanitárias cristãs, defendendo a dignidade e a santidade da vida, combatendo a crueldade do aborto, da fome e da injustiça, chamando a atenção de uma humanidade angustiada e confusa para os valores espirituais e eternos.
Ao mesmo tempo, a mentalidade protestante, moldada pelo ensino das Escrituras, se sentiu desconfortável com certos aspectos da visita pontifical. Parece contraditório que um líder que tem como principal marca de sua atuação, a começar do título que escolheu, a humildade e a simplicidade, seja objeto de tamanha veneração e receba uma ênfase tão apoteótica. Isso contrasta com a humildade do próprio Jesus (Mt 8.20) e com a atitude do seu precursor, João Batista: “Convém que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3.30). Aliás, para os filhos da Reforma do século 16, a espiritualidade católica tem um excesso de objetos de veneração e culto -- Maria, os anjos, os santos --, que desviam a atenção das pessoas do único que deveria ser alvo de toda a sua devoção e amor -- o Deus trino (“Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto” -- Mt 4.10). Poucas semanas antes de vir ao Brasil, o papa Francisco assinou o decreto de canonização de dois de seus antecessores -- João XXIII e João Paulo II -- e, ao que tudo indica, ele mesmo terá destino semelhante dentro de poucas décadas.
Porém, a visita do pontífice também deu aos evangélicos a oportunidade para uma necessária autocrítica. Em contraste com uma vigorosa demonstração de unidade e coesão por parte dos católicos, de um enorme entusiasmo e vibração por sua igreja e seu líder, ficou evidente mais uma vez a desunião e fragmentação protestante. Apesar do seu grande número no país, a maior mobilização que os evangélicos brasileiros conseguem promover é a Marcha para Jesus, composta em grande parte de adeptos de poucas denominações e carente da organização, participação e riqueza programática da JMJ. Outro contraste que pode ser instrutivo diz respeito aos estilos de liderança. Ao contrário de um papa que procura sinceramente se desvencilhar dos aspectos mais pomposos e majestáticos de seu ofício, vários dos principais líderes protestantes brasileiros são conhecidos por sua vaidade, ambição e apego a títulos e status, ignorando o ensino de Cristo sobre uma liderança servidora (Mt 20.26s; 23.8-11).
Uma terceira autocrítica teria a ver com a tendência das igrejas evangélicas de se fecharem em seus guetos eclesiásticos, somente vindo a público para defender causas de interesse particular, e não os reclamos da sociedade brasileira como um todo, notadamente no âmbito social. É pouco provável que a visita do papa Francisco venha a mudar acentuadamente o cenário religioso brasileiro, de declínio numérico do catolicismo e crescimento dos movimentos evangélicos populares. Todavia, as igrejas protestantes e seus dirigentes fariam bem em aprender as lições construtivas que essa visita histórica deixou.
Autor:
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”.
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